terça-feira, 26 de junho de 2012

Criatividade fotográfica





O fotógrafo Zhao Huasen retrata os habitantes chineses naquele que é quase o veículo oficial do país: bicicletas. Depois ele edita as imagens e retira as magrelas - deixando os usuários literalmente voando pelas ruas.


Um sorriso Emoldurado - Crônica na Revista Bula


A foto é um instante eternizado de ausências. O recorte de um momento para ser dividido com quem não participou da celebração ou do luto por motivos importantes, mesquinhos ou corriqueiros. Uma viagem, doença, trabalho ou até mesmo porque ainda não nos conhecia ou preferia esquecer. De qualquer forma, a revelação de um genuíno altruísmo e também a acusação venenosa de vingança: não estávamos lá.
É impossível descobrir o desenrolar e o prelúdio do ápice. Ficamos restritos àquele fragmento congelado de tempo. O vestido branco eternamente imaculado, os lábios vermelhos emoldurando o sorriso de comercial, enquanto a renda nos braços esconde com o trançado translúcido dos fios a pele exposta no decote das costas. Olhando com mais atenção, talvez uma solitária pinta no emaranhado de pixels. 
No mais, apenas dúvidas. Talvez o vestido tenha manchado com o vinho, o batom borrado com o beijo e as costas arranhadas pelas unhas. O registro é a perpetuação de um instante em uma vida efêmera e muito mais rica, mas o suficiente para despertar certezas nos protagonistas e interrogações na audiência. 
O receio não se restringe a questões abstratas. Mais do que a ausência, o espectador encara o dilema de desconhecer quem estava lá. As mãos que seguram a câmera pertencem a um antagonista velado. Alguém que não se restringiu a observar um pedaço do passado, mas que vivenciou aquela imagem — e tantas outras que a seguiram.
Ainda não existem máquinas capazes de captar o perfume, a textura da pele, o calor do corpo e, principalmente, os sentimentos que podemos esconder atrás de um sorriso. Melhor assim. Permanece a esfinge. O desafio é escapar da prisão de duas dimensões do retrato. Desvencilhar os fatos da poesia e abraçar o que interessa.
Simplesmente não podemos nos contentar com a artificialidade de uma fotografia e esquecer a imperfeição da realidade. Trocar o eterno sorriso por um lapso de tristeza, contanto que real. Principalmente quando a simples presença dela é como um perfume inesperado numa tarde qualquer. Aquele sentimento de arrebatamento e rendição.
“Fotografar é escrever com a luz”, diz o clichê. Observando essas linhas nos sofás de domingo ou na tela do computador é impossível deixar de notar que eternamente conjugamos no pretérito.  Não estávamos lá. Ainda assim, sou grato por essas migalhas de eternidade. O simples gesto de parar e sorrir significa que, ainda que por um momento, alguém decidiu compartilhar com o futuro a simples perfeição do presente.

Veja a publicação original.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os cadáveres do humanismo


O poeta Bruno Tolentino disse certa vez que só entraria em uma universidade brasileira fantasiado de cachorro. Um notório exagero, visto que o instinto animal o privaria de viver em ambiente tão insalubre. A academia deixou de ser o lugar para a disseminação de conhecimento e debate para tornar-se palanque de panfletagem barata. O rigor científico foi substituído pelo senso comum e a fé num humanismo redentor. O resultado dessa mistura de absurdos não é registrado apenas pelos números pífios do Enade, no qual 33% das universidades ficaram abaixo da média, mas principalmente nos danos causados aos estudantes nas salas de aula.
Por esse motivo parto do individual para o todo. Eu curso Direito numa grande universidade privada. Na última aula de Ciências Políticas a professora bradou para cerca de 60 alunos: “A Igreja Católica matou milhares durante a Santa Inquisição”. Ponto. Fontes? Documentação? Nada além de preconceito contra a religião embasado na autoridade moral do esquerdismo capenga. Iniciei o debate em linhas gerais para logo em seguida ser cortado: “Você precisa estudar mais”. Uma doce ironia no seio universitário.
Não é espantoso que uma professora de uma grande instituição de ensino superior desconheça a obra de Agostino Borromeo, um relatório de 800 páginas que inclui todas as atas oficiais do simpósio internacional realizado em 1998 pela comissão teológico-histórica do Comitê do Jubileu, constatando que os tribunais eclesiásticos foram muito mais indulgentes do que seus colegas civis. Na verdade, é bem natural, afinal, ele destrói mitos propagados nos últimos anos por militantes anticatólicos. Segundo o levantamento, dos 125 mil processos, a Inquisição espanhola condenou à morte 59 bruxas. Na Itália foram 36 e em Portugal, 4. Nos tribunais civis, o número chegou a 50 mil pessoas condenadas à fogueira em um total de 100 mil processos realizados durante a Idade Média na Europa.
Mesmo que fosse apenas uma condenação, seria execrável. Mas a realidade por trás do politicamente correto é que a história da humanidade é baseada em derramamento de sangue e em vários momentos as religiões foram responsáveis pelas mortes, bem como os progressistas. Existe apologia à violência tanto na Bíblia quanto no Corão, guias da maioria da população mundial. O mesmo ocorria antes da ascensão do monoteísmo. Homossexuais e adúlteras eram apedrejados até a morte, enquanto criminosos eram mutilados – e essas práticas permanecem em execução até hoje no Oriente Médio. Enquanto isso, países como a China aplicam a pena de morte indiscriminadamente, chegando a cobrar dos familiares a bala usada para despachar o falecido. Em Cuba, a diversidade sexual é punida pelos comunistas com prisões e mortes. Enfim, são muitos os exemplos de barbárie em pleno século XXI.
A visão humanista acadêmica trata o número de mortes na Idade Média como o retrato da obscuridade do período, sem atentar que é uma constante na história. A época imediatamente posterior também padeceu de violência inominável e é tomada como exemplo de superação dos mitos “nefastos” impostos pela religião. O Iluminismo se diferenciava em pouco da crueldade aplicada pela Inquisição. A principal é que os acusados nos tribunais religiosos tinham o direito de defesa preservado (inclusive, o período é o berço de muitos dos direitos garantidos aos criminosos atuais). Na França e em outros países banhados pela revolução intelectual promovida por Rousseau e seus amigos, os nobres eram simplesmente decapitados e pronto: um novo período de glória se iniciava.
A academia acredita que ignorando a religião o conhecimento virá naturalmente pelo método científico. O que escapa aos professores, como a senhora que citei acima, foi bem exemplificado pelo filósofo britânico John Gray, no livro "Cachorros de Palha" (Record, 255 pág.): é preciso colocar à prova nossa crença no humanismo, assim como também colocamos a religião. Acima de tudo, é necessário entender o processo histórico sem preconceitos. Retirando a paixão do debate, a Idade Média ofereceu muito mais à humanidade do que corpos carbonizados. Isso nós conseguimos hoje, mesmo com todo o progressismo das universidades.
Diogo Luz é jornalista.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Artigo no blog do senador Demóstenes


O lambari petista
Diogo Luz
Na última década, 31 milhões de pessoas entraram na classe média, formando um contingente de 95 milhões de brasileiros com renda familiar de R$ 1 mil a R$ 4 mil por mês. A notícia é tão boa que o governo federal praticamente passou os últimos anos comemorando, sem fazer nada mais para reduzir a dependência que essa enorme fatia da população tem do estado. O trabalhador aprendeu a pescar, mas ainda é obrigado a bancar o dispendioso pesque-pague estatal.
Não entro no mérito da questão sobre a paternidade da espiral econômica opulenta da última década – todos sabem que foi graças às políticas econômicas de FHC. Ainda assim, não deixa de ser instigante que o debate sobre a estabilidade financeira permaneça na barreira da casa própria. É ainda mais intrigante entender por que pagamos o dobro do valor real de uma residência em financiamentos subsidiados pelo governo, enquanto o Brasil tem um dos maiores territórios desocupados do mundo, com matéria-prima abundante para a construção civil. Mas esse simplesmente não é um tópico muito popular em Brasília.
Passemos, então, a assuntos menos embaraçosos. A fila do SUS, por exemplo. A nova classe média alardeada pelo ex-presidente Lula e a gerentona Dilma Rousseff possui renda familiar suficiente para comprar um carro popular a longas e suadas prestações ou levar os filhos no Mc Donald´s no final de semana, mas é insuficiente para pagar por um plano de saúde decente. Na primeira febre do filho na madrugada, lá se vão os pais para a porta dos postos de saúde rezando para encontrar o médico ou os equipamentos em perfeitas condições. Os dois funcionando em harmonia são um sonho grandioso demais para ser cogitado.
Embora nem mesmo o governo negue o fiasco que é a saúde pública (preferem simplesmente adornar o caos com jargões militantes de cartilha), não existem linhas de financiamento específicos para procedimentos cirúrgicos. A lógica é simples: mesmo com potencial para bancar o próprio tratamento, o respeitável membro da classe média é obrigado a empanturrar ainda mais a fila do atendimento público porque ninguém pensou em emprestar o dinheiro para ele. Mesmo que o carro popular seja uma das garantias de pagamento.
A educação passa pelo mesmo problema. É praticamente impossível para os emergentes pagar escolas particulares para os filhos, preferindo poupar para a universidade. Então, as crianças são enviadas para colégios estaduais, onde o nível de ensino é baixo por muitas outras razões além dos salários dos professores. As chances de entrar numa universidade federal são mínimas, mas tudo bem: basta fazer o Enem e responder uma ou duas questões sobre as tirinhas do Hagar e dar o primeiro passo para tornar-se um profissional de sucesso de nível superior.
E aí está outra propaganda forte do governo federal: nunca tantos jovens entraram na universidade. Nenhuma palavra sobre o que fazem depois de cruzar a soleira da porta. Ficariam envergonhados se expusessem no horário nobre o resultado pífio da nossa pesquisa acadêmica em comparação com outros países que estão em fase de industrialização. O pouco do resultado positivo está nas federais, onde os filhos da classe média alta são maioria. Ainda assim, não há muito do que se orgulhar.
O estado não pretende emancipar os 95 milhões de brasileiros da classe média. O paternalismo público funciona da mesma forma para essa parcela da população como para os 50 milhões de beneficiários do Bolsa Família: não há porta de saída. O empreendedorismo é tosado pela opressora carga de impostos e burocracia, o conhecimento acadêmico é moldado pelo manual ideológico do mandatário da vez e 145 milhões de pessoas ficam eternamente dependentes de um único e supremo líder. Mas ainda podemos comprar um carro e comer fast-food. Desde que o veículo não venha da Ásia e a comida não seja transgênica.
Diogo Luz é jornalista.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Nas noites de terça

As mãos percorriam minha barba enquanto um olhar minucioso avaliava meus lábios e olhos. A boca dela se retorceu por um segundo enquanto media o tamanho e o formato das orelhas, ampliando ao máximo o suspense da crítica. Prendi a respiração para ouvir veredito: –“É... até que você é bonitinho”. O resultado não poderia ser melhor, admito. Confesso ainda que o fato de ambos estarmos nus naquela cama surtiu um efeito positivo sobre a jurada – mas nada que possa ser configurado como compra de votos, fiquem tranquilos.

Nos deixamos ficar ali, espreguiçados, apenas relaxando sob o ar condicionado por alguns minutos. Tudo parecia tranqüilo e até mesmo sugeri que passássemos a noite juntos. Ela voltou a aninhar-se no meu peito a acariciar minha barba. Ergueu a outra mão e fez festa nos meus cabelos. Talvez estivesse mesmo arrumando um penteado ou algo assim. Depois de terminar os ajustes, me encarou nos olhos com uma sinceridade esmagadora. “ – Você precisa de alguém para cuidar de você”, e me beijou nos lábios. Logo em seguida apanhou a toalha e foi para o chuveiro.

Ficamos a sós. Eu e as minhas imagens refletidas em centenas de espelhos espalhados pelo quarto. Acendi um cigarro e comecei a pensar naquela frase. Não nos conhecemos há muito tempo e, para falar a verdade, estou com ela mais pela carência de uma rejeição recente. Não me acusem, a garota também não é apenas bondade. Mas enfim, formamos um casal de apoio mútuo e está bom assim. Apesar de tudo isso, a frase martelava insistentemente na minha cabeça. De súbito vi que estava na merda. Um conselho desses (“você precisa de alguém para cuidar de você”) só é dado para alguém que vai de mal a pior.

Ela voltou a deitar-se ao meu lado, desta vez com os cabelos molhados. As gotas espalhavam-se entre nossos corpos e encharcavam todo o colchão. Não achei ruim, pelo menos refrescava ainda mais aquela noite infernal – o ar condicionado não era dos melhores, afinal de contas. Acendemos cigarros e ficamos parados, tentando prolongar ao máximo aqueles minutos de prazer. Desisti de tentar compreender o porquê daquele conselho. A verdade é que eu realmente preciso de alguém para cuidar de mim – e ela sabia que não seria capaz de cumprir a tarefa, ou simplesmente não se importa.

Os fios rudes

A vantagem de trabalhar viajando constantemente é o tempo disponível para tirar um cochilo entre uma parada e outra. O desconforto, o sacolejo incessante provocado pela estrada cheia de buracos e as constantes cabeçadas no vidro da janela – e o conseqüente torcicolo de cada dia – não são nada comparados ao solitário prazer de puxar uma palha no meio da tarde. No meu caso, valorizo ainda mais esses momentos de ócio porque consigo, de certa forma, conduzir meus pensamentos nesse estado de torpor. Uma espécie de sonho lúcido.

A ideia é ridícula, mas é a mais pura verdade. Basta sentar no banco e me aconchegar para enfrentar 500 km de estrada e me entrego inteiramente ao sono. As imagens começam a surgir logo depois. Na última viagem, por exemplo, enquanto meus companheiros deliciavam-se com as tonalidades do meu ronco, me vi em algum lugar campestre, uma casa aconchegante – e uma filha. O enredo não interessa, mas a sensação de caminhar ao lado daquela criança é indescritível.

Não foi o meu primeiro encontro com a menina, minha filha. Nos vimos em outros lugares, algumas vezes urbanos, caóticos, paradisíacos; mas sempre acompanhados, nutrindo uma sensação de confiança mútua. Muitas vezes desejei não acordar. Não queria abandoná-la em algum ponto da minha mente, desamparada. Acordar significa, acima de qualquer coisa, que ela deixa de existir. Talvez tudo isso seja um pouco de carência, eu sei. No final, sempre acreditei que o único amor incondicional é o paternal.

Uma coisa que sempre chama minha atenção nos meus sonhos é que a minha filha gosta da minha barba. Quando a seguro em meus braços, a sua mãozinha sempre procura os fios emaranhados e rudes no meu rosto. A mesma mania que tenho quando estou sozinho: acariciar a barba. Certa vez uma mulher me flagrou fazendo isso e disse que era sinal de carência – não a contestei. Ela não era próxima, tampouco tinha minha simpatia, mas aquela senhora fez algo que nunca vou esquecer. Ela me puxou pelos braços e me deu um abraço de uns cinco minutos. E em contato com aquele corpo tão desprezado, nunca fui tão querido.